domingo, 2 de junho de 2013

XVIII

I

Não contemplas como som destinadas as dálias
a púcaros tão tristes
como se difundem
no teu idioma frio
os matizes mais intensos da memória
nesta casa só
o amanhecer opaco dos dias
não contemplas
a extremidade do silêncio
onde a tua boca
não recebe mais que sombra
e igual que sombra
o peso de toda essa memória
recai na tua alma
como um sopro estranho
sobre a ménsula das horas
não contemplas
como se adentram as tardes
como uma pulsação precisa
nesta casa só
onde ocupas um âmbito de signos
o teu lugar de frio
e o tempo flui entre as cousas
nessa queda das cousas
que suspeitas no teu coração
não contemplas, enfim
o passado
esse território da tua brancura inexacta
o passado, as suas dálias
as suas dálias destinando-se
a púcaros tão tristes
não contemplas?

Penela, Carlos As linhages do frio A Corunha; Espiral Maior 1998 p. 35-36

Carolos Penela (Vigo, 1975)

sábado, 1 de junho de 2013

XVII

Observo o muro com vidros de Caxigueiro enquanto como as unhas.
E penso no muro de vidros duma casa colonial que me proíbe a passagem.
Esfrego os olhos quando me proem ou tenho vergonha alheia,
amanhã prometo falar menos e compartilhar mais os silêncios.

Devoro os iogurtes e falo com a boca cheia para que me prestes atenção.

Consola-me ver água estagnada e levanto a tampa da sanita ao mesmo tempo que limpo os dentes.

Coleciono escovas de dentes de todas as épocas do mundo.
Daqui a pouco poderás subscrever-te à coleção.
                      -meio mundo vive do aborrecimento do outro meio-

          Psicanálise imperativa:
          Não subas ao muro que podes cair!
          Comer as unhas é sintoma de debilidade.
          Não esfregues os olhos que os pões vermelhos e estás feia!
          Comer rápido é sintoma de ansiedade.
          Falar com a boca cheia é de má educação.
          Não deixes a tampa da sanita levantada!
          Colecionar objetos pode ser sintoma de conjunto vazio?

Pedreira, Ugia Noente paradise Santiago de Compostela: Através editora 2010 p.20

Ugia Pedreira Sanches (Foz, 1969)

domingo, 26 de maio de 2013

XVI

Ainda vinhas contar
duas pedrinhas à beira do rio

as pombas e lavandeiras
rondado o céu tornavam-se andorinhas

podiam também ser contadas
qual tesouras fainando
num pôr-do-sol de adivinhas

enquanto nós andávamos a pelejar
teus brincos pintando coroas berlindes

Foi por um beijo teu
que perdi meu amigo

E ainda faltavam dois terços de Junho

Levaste-me a mão
com tanta doçura
dobrei teu corpinho
tomado em suspiros

como chuva fresca
resvalei no teu ninho

e não me importou
perder meu amigo

Alonso Novelhe, Artur Entre os teus olhos Ourense: Difusora das Artes 2003 p. 19-20


Artur Alonso Novelhe (México D.F.,1964)

sábado, 25 de maio de 2013

XV

Na quietude da última tarde de inverno
alçam-se com violência nas ramas nuas e curvadas
das árvores que pronto serão cortadas,
e alguém eleva os olhos a uma cadência escura no céu
composta por minúsculas silhuetas alteradas.

Dançando fugitivos o que abandona a sua mente
às ideias que não deveriam correr pelo seu cérebro,
deixa afogar a angústia e ficar selando
os lábios esgotados do sangue ainda quente,
quem alguma vez se deteve
perante a dança dos estorninhos.

A soidade pode ser o melhor de estar sozinho.
A soidade pode ser o pior de estar acompanhado.
A soidade pode ser o pior de estar sozinho.
A soidade pode ser o melhor de estar acompanhado.

Sabe isto quem alguma vez contemplou
a dança dos estorninhos.

Branco, Laura doenças dum espelho s.l.: Corsárias criação 2012 p.87


Laura Branco [Laura Blanco de la Barrera] (Foz, Lugo, 1984)

XIV

Quando ouço falar de bárbaras estirpes,
calo, guardo silêncio, calo,
dos pobres dos pobres, berço de escravos
som nado.

Quando ouço falar das grandes pátrias,
calo, guardo silêncio, calo,
a longa dos que por leito o chão têm
é a pátria que amo de cabo a cabo.

Quando ouço falar das fachendosas bandeiras,
calo, guardo silêncio, calo,
a vermelha que nasce nas mãos brutas e pretas
é a bandeira que ergo de contado.

Quando ouço falar das infindas riquezas,
calo, guardo silêncio, calo,
com os que lhes roubaram terra a fazenda
suo a côdea que janto.

Corral Iglesias, José Alberte Palavra e memória A Corunha: Academia Galega da Língua 1997 p. 96



José Alberte Corral Iglesias (A Corunha, 26 de fevereiro de 1946)

sexta-feira, 24 de maio de 2013

XIII

IV

Aos poetas desta terra

CANTAI as doces cores deste país aquoso
em que abala o tempo em ondas de saudade,
cantai os verdes campos, as várzeas sensitivas,
os horizontes calmos de azul imensidade.

Cantai o eco místico dos vales florescidos
entre altos carvalhos de centenário alento,
olhai cada regato sob as pôlas das árvores,
sob a lua profunda onde sussurra o vento.

Admirai as montanhas de graníticas abas,
os cumes coroados de um brilho cintilante,
cada ria distante, cada eco nos bosques,
cada nova palavra num corpo de diamante.

Procurai esta terra nas mãos dos mais humildes,
nos campos sempre abertos, nos mares trabalhados,
conservai cada árvore, cada ponte ou caminho,
cada erva molhada nos lares sempre amados.

Assim não morrerá o eco deste verso,
porque a nossa memória é um antigo destino,
uma palavra amável, uma cantiga oculta,
ou um riso de prata sob um mar cristalino.

Brea, Ângelo O país dos nevoeiros Culheredo, A Corunha: Espiral Maior 2005 p. 20


Ângelo Brea (Santiago de Compostela, 1968)

terça-feira, 21 de maio de 2013

XII

GUITARRA PORTUGUESA

Aos mágicos dedos sonoros
de José Pracana.

Fios feridos
a ecoarem
no labirinto da alma
atingindo o ponto trémulo
onde se congela a chama
e cristaliza o suspiro
incandescente da lágrima

Líquida
e infinda
íntima
e longínqua
pétala e raiz -
a voz da guitarra

Estoril
10 de dezembro
1985

Guerra da Cal, Ernesto Deus, tempo, morte, amor e outras bagatelas Lisboa: Livros Horizonte 1987 p. 77


Ernesto Guerra da Cal (Ferrol, 1911; Lisboa, 1994)